Ministros do STF voltam a julgar ação que há mais de 18 anos questiona a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Para organizações, a lei trouxe prejuízos ao país ao criar a CTNBio, comissão que tem a exclusividade na liberação de transgênicos sem exigir estudos rigorosos
O Supremo Tribunal Federal (STF) volta a julgar nesta sexta-feira (23) a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, que favorece o mercado de transgênicos no Brasil. Em formato virtual, o julgamento tem previsão de terminar no próximo dia 30. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3526), ajuizada em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, contesta mais de 20 dispositivos da lei referentes à fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados.
Conforme o artigo 225 da Constituição Federal, atividades com potenciais prejuízos ao meio ambiente devem ser submetidas obrigatoriamente a estudos prévios de impacto ambiental. O que é o caso dos transgênicos. Entretanto, a Lei de Biossegurança faculta a realização dos estudos prévios. E reestruturou a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que passou a decidir, sozinha, sobre as liberações de transgênicos.
Em outras palavras, deu carta branca à comissão. Nesses 18 anos, a CTNBio não tem tratado com seriedade a questão. Transformou-se em guichê de aprovação automática dos pedidos de liberação apresentados pelas indústrias. A maioria de seus integrantes, alinhados aos mesmos interesses das indústrias de biotecnologia, dispensa experimentos e aceita os estudos apresentados pelos interessados. Mesmo sendo insuficientes e com deficiências inclusive na metodologia.
Integrante do Movimento Ciência Cidadã, o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo foi membro da CTNBio no período de 2008 a 2014. Foi voto vencido em todas a liberações. “O passar do tempo mostrou acúmulo de evidências científicas e empíricas da fragilidade das decisões da CTNbio e dos estudos apresentados pelas empresas interessadas”, disse ao site da organização Terra de Direitos.
CTNBio atribuiu a si mesma a prerrogativa de dispensar análises
“Não se trata apenas de falsas promessas, como a de melhoria na qualidade dos grãos, ou redução no uso de agrotóxicos. Além das evidências das excessivas deliberações apoiadas em amostragens e estudos inadequados, enviesados, insuficientes, e contestados em publicações revisadas por pares, observa-se que a CTNBio atribuiu a si mesma o direito de dispensar a análise prevista para os organismos geneticamente modificados novas tecnologias de edição genética, justificando que aqueles não seriam OGMs”, destacou.
Para se ter uma ideia dos efeitos dessa liberação indiscriminada das sementes transgênicas nesses 18 anos, o uso de agrotóxicos disparou no país que já era um dos maiores consumidores do mundo. O detalhe é que essa tecnologia chegou ao mercado com a falsa promessa de reduzir o uso desses produtos.
Pesquisas da Fiocruz e Embrapa mostram que “contrariando as expectativas iniciais de diminuição do uso de agrotóxicos após a introdução de culturas geneticamente modificadas, o uso aumentou 1,6 vezes entre os anos de 2000 e 2012. No caso da soja, em mais de três vezes.
Isso acontece porque a natureza se impõe à tecnologia das sementes transgênicas. Desenvolvidas com o pretexto de acabar com insetos e plantas daninhas, essas plantas no início são resistentes a altas doses de agrotóxicos. Mas vão perdendo a eficácia. Esses alvos naturais criam resistência a esses venenos. E para destrui-los, são necessárias doses cada vez maiores desses produtos.
CTNBio nunca rejeitou pedido de liberação de transgênicos
E se há dúvidas e incertezas sobre os impactos dos transgênicos, sobram certezas sobre os agrotóxicos. Pesquisas confirmam sua relação com diversos tipos de câncer, malformações congênitas, alterações hormonais e uma série de outros problemas graves. Não é a toa que cada vez mais vão sendo banidos em diversos países, menos no Brasil.
A assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade, destacou outras falhas da CTNBio. “Nesses 18 anos de atuação, a CNTBio nunca negou um pedido de liberação comercial de OMGs das empresas requerentes no Brasil. Apenas faz uma análise de riscos no próprio âmbito da comissão, não remetendo o processo para o licenciamento ambiental aos órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) cumprindo-se assim com as exigências do EIA/RIMA (estudo e relatório de impacto ambiental). Ou a indicação de medidas mitigadoras ou redutoras de impactos”.
A organização atua juntamente com o Movimento dos Pequenos Agricultores como amicus curiae (amigo da corte) no processo no STF. Subsidia os ministros em seu entendimento com informações técnicas. Entre elas, pelo menos 750 estudos científicos indicam riscos e incertezas dos OGMs que foram desconsiderados pela CTNBio.
Após 16 anos do ajuizamento do ação movida pela Procuradoria-Geral da República, o STF iniciou o julgamento. Mas acabou suspenso em agosto de 2021, com pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Antes da interrupção, haviam se manifestado apenas os ministros Edson Fachin e Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro e simpatizante da pauta ruralista.
Relator, Nunes Marques defende a lei com falsos argumentos
Marques herdou a relatoria do ex-ministro Celso de Mello, a quem sucedeu. Em seu voto, desprezou a exigência constitucional de estudos prévios de impacto ambiental de atividade causadora de dano ao meio ambiente. Em vez disso usou, de maneira equivocada, o argumento de que vacinas, por exemplo, que contêm OGMs não geram impacto ambiental. E que portanto dispensam estudos prévios.
Em sua defesa da constitucionalidade da lei questionada, chegou ao ponto de argumentar, com base em notícia de jornal, que os transgênicos reduzem o uso dos agrotóxicos “ao criar plantas mais resistentes, diminui-se a necessidade de aplicação de defensivos agrícolas para combater as pragas”.
Marques defende também que a competência legislativa seja exclusiva da União, no caso, por meio da CTNBio – um dos pontos questionados na ADI. “A competência para licenciar e fiscalizar deve dar-se dentro do quadro normativo criado pela lei da União. Os estados e municípios, em tese, poderiam até ampliar certos serviços, suplementando a lei federal, mas tudo dentro do espaço semântico da lei geral editada pela União”, diz em trecho do voto.
Para o ministro, “os entes locais podem suplementar a legislação federal, sem prejuízo da observância do quadro normativo traçado pelo Congresso Nacional.” No entanto, o ministro ignorou o contexto de omissão de estados da federação até mesmo na fiscalização dos transgênicos. É o caso da Agência de Defesa Agropecuária do Paraná (Adapar), que se viu desobrigada de fiscalizar o descumprimento de medidas para não contaminação de cultivos de milhos crioulos por cultivos com sementes transgênica.
Fachin vota contra ao considerar incertezas sobre os impactos dos transgênicos
Em oposição, Fachin reafirmou a competência comum entre União, estados e municípios na proteção ambiental e apontou que todos os entes da federação “não podem se desincumbir por simples referência à atuação da União”, disse o ministro, que divergiu do relator e acolheu a ação. Em seu voto considerou os alertas de organizações ambientalistas e de defesa dos direitos humanos, pautadas pela boa ciência praticada em todo o mundo. E considerou as dúvidas e incertezas em torno impactos à saúde e ao meio ambiente.
“Há graves incertezas quanto às consequências relativas ao seu impacto nos ecossistemas, na biodiversidade, nos modos tradicionais e autóctones de vida, e em questões socioculturais”, enfatizou o ministro. E ainda destacou a necessidade de observância do princípio da precaução e convenções dos quais o Brasil é signatário. É o caso da Convenção sobre Diversidade Biológica e o Protocolo de Cartagena.
“Uma vez que este princípio da precaução reclama aplicação no caso concreto, revela-se injustificada a opção do legislador de alocar, unilateralmente, na CTNBio a competência para definição do potencial danoso de organismos geneticamente modificados”, aponta Fachin em outro trecho do voto. A potencial lesividade dos organismos geneticamente modificados é reconhecida pela legislação brasileira, com uma com lei voltada especificamente à biossegurança nacional e em instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.