“A gente continua resistindo, por memória, justiça e esperança”, diz Dom Vicente Ferreira “A gente continua resistindo, por memória, justiça e esperança”, diz Dom Vicente Ferreira

Diversos, Notícias, Tribuna Livre | 25 de janeiro de 2023

Bispo da Arquidiocese de BH alerta para a impunidade, a violência e o adoecimento de atingidos pelo crime da Vale


por Ana Carolina Vasconcelos| Brasil de Fato

 

No dia 25 de janeiro deste ano, um dos maiores crimes socioambientais e trabalhistas da história do país completa quatro anos. O rompimento da barragem da Vale, em Córrego do Feijão, no município de Brumadinho (MG), contaminou o Rio Paraopeba e a represa de Três Marias, deixou 272 vítimas fatais e alterou os rumos da vida de milhares de moradores das regiões atingidas.

Mesmo em luta constante por reparação justa, as famílias dos territórios impactados enfrentam a impunidade e um cenário de aumento do adoecimento e da violência.

Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte e responsável pela Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser), dom Vicente Ferreira acredita que a dura realidade enfrentada pelos atingidos é resultado da lógica extrativista predatória que impera atualmente no Brasil.

“O sentimento de impunidade, o luto individual e coletivo, as divisões provocadas pelas mineradoras, a não participação dos atingidos nos acordos feitos, são alguns dos fatores que impactam e impossibilitam a recuperação da saúde integral da população na bacia do Rio Paraopeba e na represa de Três Marias”, afirma.

Para entender mais sobre esse cenário, o Brasil de Fato MG conversou com o bispo, que anuncia que, ainda que seja difícil, ainda há resistência.

 

Brasil de Fato MG – Após quatro anos do rompimento da barragem da Vale, quais são as consequências enfrentadas pelas famílias das comunidades atingidas?

Dom Vicente Ferreira – O crime é a grande violência, resultado de um sistema extrativista predatório. Antes dele, já havia problemas sérios e, depois dele, a sociedade passa a conviver com uma espécie de crime continuado, por conta do trauma causado nas estruturas sociais e no meio ambiente.

Essa realidade é piorada pelo fato de os processos de reparação violarem a soberania das comunidades. O sentimento de impunidade, o luto individual e coletivo, as divisões provocadas pelas mineradoras, a não participação dos atingidos nos acordos feitos, são alguns dos fatores que impactam e impossibilitam a recuperação da saúde integral da população na bacia do Rio Paraopeba e na represa de Três Marias.

 

Além das 272 vítimas fatais do crime, estudos demonstram que parte dos atingidos convive com uma série de impactos em sua saúde física e mental. Como você avalia esse cenário?

Há um grande índice de adoecimento mental que se verifica, principalmente, em mulheres, pessoas de baixa escolaridade e que vivem próximas às áreas de atividade minerária. Com esse adoecimento psíquico, em virtude das violações, os conflitos nas comunidades aumentaram.

Constata-se a intensificação do índice de agressões contra as mulheres no ambiente doméstico, aumento da depressão e do suicídio, nível alto de metais pesados no corpo das crianças. Além de a minerodependência, com suas promessas de progresso, reduzir a expectativa de vida das comunidades e a sua capacidade de resistência, de enfrentamento.

Lideranças e ativistas sofrem ameaças diretas e indiretas

Tudo isso gera um tecido socioambiental conflituoso, que nada mais é do que a continuidade do sistema colonial, lógica massacrante nos territórios minerados e que, muitas vezes, é vista pela população como a única opção socioeconômica.

 

Sem ninguém formalmente responsabilizado pelo crime, e o processo judicial contra a mineradora sem desfecho, um dos impactos diretos da impunidade tem sido o aumento da violência. Como você observa essa realidade?

A impunidade aumenta a violência quando, por exemplo, as mineradoras descumprem as leis promulgadas após o crime, como aconteceu no caso da Lei “Mar de lama nunca mais”, da Política Estadual dos Atingidos por Barragens (Peab) e da Política Nacional de Segurança de Barragens. Ao burlarem as decisões legais, as mineradoras mantêm seus modus operandi predatório, colocando a população impactada pelos empreendimentos minerários em segundo plano e o lucro acima da vida. Além disso, a ausência de acesso às informações sobre outras barragens nos territórios, com risco de rompimento, continua causando terrorismo nas comunidades.

Outro ponto relevante são os critérios elencados para o recebimento de indenizações individuais. Utiliza-se critérios arbitrários, motivo que causa conflito e divide, internamente, as comunidades atingidas. Um exemplo disso é quando uma pessoa atingida é indenizada, mas o seu vizinho tem a indenização negada pela via extrajudicial da mineradora. Essa prática segrega os próprios atingidos e mantém a sensação de injustiça.

Em Betim (MG), caminhada em defesa do Rio Paraopeba, contaminado após rompimento da barragem da Vale em Brumadinho / Marcela Nicolas

 

Nesse contexto complicado, como tem sido a realidade de lideranças e ativistas que denunciam a prática minerária na região?

A política local conservadora exerce uma disputa dos grupos vinculados à política coronelista nas cidades atingidas pelo rompimento. Há posicionamentos claros contra as lutas das pessoas atingidas, dos movimentos sociais, sobretudo em relação a pautas que defendem os mais pobres e as comunidades envolvidas com a atividade das mineradoras nos territórios.

Lideranças e ativistas sofrem ameaças diretas e indiretas. Principalmente, por meio de ligações anônimas e intimidações dos funcionários das empresas mineradoras e terceirizadas. As pessoas atingidas que denunciam a prática das mineradoras da região são vítimas de assédio, praticados pelos RCs (relações com as comunidades) da Vale, na tentativa de “ganhar a confiança a todo custo”. Usam um discurso manipulador, sobretudo que tem como base o progresso trazido pelas mineradoras para as comunidades. A exaltação midiática dos sinais de progresso que as mineradoras trazem não passa de maquiagem. São violentas para as pessoas atingidas que assistem.

É extremamente difícil manter a chama da resistência nesse território que, principalmente a Vale, transformou em foco de seu domínio arrogante

Também há casos concretos de atentados e ameaças contra a vida. Inclusive, há várias pessoas dos territórios atingidos pelo crime da Vale que estão em programas de proteção de defensores dos direitos humanos. Não estou falando de coisas abstratas. Temos notícias reais de tentativas de homicídios, como o rompimento de cabo de freio de veículo e perseguição nas estradas.

Difamação e calúnia de quem se opõe ao domínio minerário são práticas muito presentes. Nas redes virtuais ou na convivência cotidiana.

As ameaças chegam por meio de pessoas ligadas, diretamente ou indiretamente, às mineradoras e ao coronelismo das cidades atingidas. Além do racismo, da xenofobia e deslegitimação das comunidades e daqueles que defendem uma narrativa contrária ao crime continuado.

 

Como esse cenário de impunidade e violência impacta nas relações comunitárias dos atingidos?

Considerando tudo que foi dito antes, percebemos, claramente, uma ruptura na harmonia das famílias, nas redes afetivas, inclusive nas expressões religiosas. A própria Igreja enfrenta dificuldades em seus trabalhos de evangelização. Há um clima contínuo de desconfiança, de críticas entre grupos e pessoas. Tudo isso diz respeito ao mundo dos afetos individuais e coletivos. Como se não bastasse o horror do crime do dia 25 de janeiro de 2019.

Em 2022, Brumadinho e a região do Paraopeba viveram uma terrível enchente. Mistura de muita água com a lama tóxica, lançadas pelas mineradoras na bacia do rio. O que causou inúmeros desalojamentos.

A gente continua resistindo. Em nome das 272 joias, das comunidades e de toda criação

 

Nosso povo é bom e trabalhador. No entanto, é extremamente difícil manter a chama da resistência nesse território que, principalmente a Vale, transformou em foco de seu domínio arrogante. Facilmente as pessoas se iludem com ideias que alienam. Nos campos políticos, econômicos e também religiosos. Não é nada fácil gerar processos de uma evangelização libertadora, por exemplo.

Tudo isso implica na maneira de as pessoas, principalmente os mais jovens, darem conta de suas pulsões, suas crenças, seus sonhos e lazer. Infelizmente, o futuro também está comprometido. Como bem disse Minayo, a “população está tentando sair desse modelo, mas é como se estivesse “tentando sair do buraco, puxando os próprios cabelos”. A gente continua resistindo. Em nome das 272 joias, das comunidades e de toda criação. Por memória, justiça e esperança.

Edição: Larissa Costa