Reza a lenda que um caboclo do interior do Marajó, farto de discussões insensatas e propostas miraculosas para os problemas ambientais e conflitos sociais Amazônia, um dia perdeu a paciência durante uma acalorada discussão e soltou: “Manda logo ‘sualhar’ essa m* que resolve o problema!”, para riso e descontração de todos os presentes.
A expressão, enunciada em tom jocoso, mandando assoalhar a Amazônia representa, de fato, uma advertência e um ultimato aos que não sabem, não entendem, e portanto são incapazes de gerar qualquer solução que encontre um caminho plausível que trafegue entre a proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável da região: se ninguém tem competência para entender a dinâmica ambiental e propor soluções coerentes com o desenvolvimento regional, então é melhor deixar que a degradação chegue às últimas consequências e acabe com tudo logo!
Apesar de ser entendida como um bioma abundante em recursos naturais e, mais recentemente, como estratégico regulador do clima no planeta, a Amazônia brasileira foi parte de um programa de Estado uma única vez. Criado em 1970 com o objetivo de ‘integrar’ a Amazônia ao ‘restante’ do Brasil através de grandes obras de infraestrutura e do preenchimento do ‘vazio populacional’ da região, o Programa de Integração Nacional (PIN), cujo lema era “Integrar para não entregar” foi um pungente e vergonhoso desastre, tanto em relação à área de infraestrutura (a Transamazônica, por exemplo, ainda que a ideia prestasse, nunca foi finalizada) quanto pela consequente e constante geração de conflitos de interesse no ordenamento territorial da região.
Passados 50 anos desde o PIN, a degradação vem se aprofundando exponencialmente, sobretudo a partir dos últimos seis anos, a despeito do conhecimento científico produzido sobre a região. Nesse sentido, é imperativo que a Amazônia, como pauta prioritária do atual governo, seja, de fato, assumida como parte de um projeto do Estado brasileiro, calcado na ciência e no conhecimento, e sobreponha-se à falsa dicotomia entre preservação e desenvolvimento.
No âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), especificamente, há três institutos de pesquisa instalados na Amazônia:
No entanto, diante da grave crise institucional dos últimos anos – sobretudo aos altos índices de aposentadoria de servidores sem as reposições correspondentes, e à diminuição orçamentária – tem sido extremamente difícil manter a produção científica necessária sobre uma das regiões menos conhecidas do planeta.
A realização de pesquisas envolvendo a biodiversidade, missão que tanto o Inpa quanto o Museu Goeldi vêm fazendo historicamente, deve ser uma tarefa levada a fator exponencial. Só nos últimos 20 anos, pesquisadores do Museu Goeldi descobriram quase 600 novas espécies da biodiversidade amazônica e uma língua indígena nova, falada em Rondônia.
No ritmo atual, nem em 50 anos teríamo conhecimento adequado e compreensivo sobre o bioma amazônico. Ressalte-se que o trabalho de produção do conhecimento se projeta ainda mais necessário e urgente diante da destruição acelerada da floresta.
O mesmo acontece com a sociodiversidade: o conhecimento e o desenvolvimento de estratégias de preservação cultural (cultura imaterial, material e linguística) atualmente produzidos, embora reconhecidamente importantes, são feitos basicamente por pesquisadores do Museu Goeldi (o Inpa e o IDSM são voltados exclusivamente às áreas da biodiversidade), e em escala incipiente em relação à enorme diversidade de povos originários e de populações caboclas e quilombolas.
Pautado em minha experiência administrativa de quase treze anos, julgo necessário encarar o desafio de manter os institutos do MCTI sob uma nova perspectiva: é preciso reestruturá-los fazendo com que suas correspondentes missões incorporem o estudo e a compreensão das grandes problemáticas regionais – que têm repercussões nacionais e mundiais – e consigam dar respostas rápidas às demandas estruturantes da região.
Dessa forma, para além do provimento e apoio necessário às pesquisas e as devidas suplementações orçamentárias e reposição de pessoal, duas ações estratégicas precisam urgentemente ser incorporadas à agenda institucional desses institutos de maneira sólida e peremptória: a inovação tecnológica em ampla escala e a capacidade de produção de conhecimento adaptado à necessidade de elaboração e de coordenação de políticas públicas para a gestão ambiental e social da Amazônia.
Embora existam iniciativas nestas áreas nos três institutos, elas ou são pontuais e dependem de ações individualizadas de pesquisadores (não sendo, portanto, institucionalizadas), ou não têm a escala e o reconhecimento, tanto do governo quanto da população em geral, como indicadores da singularidade do instituto como responsável estratégico da ação para a região.
A referência a ser buscada, por exemplo, é o papel que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), instituto irmão, cumpre, de maneira plena, no monitoramento do desmatamento e das queimadas na Amazônia. Auxilia na elaboração de políticas públicas e sendo referência nos alertas ambientais ao Ibama, ICMBio e Polícia Federal. Sem o INPE, dificilmente haveria monitoramento ambiental.
Idealmente, elas devem buscar ser referência no conhecimento sobre a sócio e a biodiversidade, na descoberta de novas espécies, na elaboração de estudos de análise e impacto ambiental para obras de infraestrutura de grande e médio porte, nos estudos que embasam a demarcação de terras indígenas e territórios quilombolas, na elaboração de planos de manejo para unidades de conservação, no auxílio às comunidades indígenas a desenvolverem alfabetos e materiais de alfabetização em suas próprias línguas, no lançamento de novos produtos e/ou processos no mercado etc.
O desafio não é intangível, se considerado o atual cenário político e econômico, em que se observa uma retomada da sensatez e da clareza quanto à necessidade de implementação de medidas de preservação e de desenvolvimento da região.
Nesse contexto, seguindo a estratégia de mudança de paradigma institucional aqui proposta, a declaração jocosa do caboclo do Marajó tenderá a permanecer no (in)consciente do amazônida apenas como piada. E não mais como um risco concreto de “solução” ambiental e social para a Amazônia.
Nilson Gabas Jr. é pesquisador titular e ex-diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi (2009-2018), Ph.D. em Linguística Indígena pela Universidade da California-Santa Barbara, fez pós-doutorado na Universidade de Antuérpia (2002) e na Universidade de Oregon (2018-19), e é membro da SBPC.