Estudos mostram que a empresa foi usada pelos militares na repressão do Estado Brasileiro aos trabalhadores e movimento sindical, contribuindo em perseguições, torturas e até monitoramento da orientação sexual dos trabalhadores
Arte e fotografia: Amanda Miranda, da Agência Pública
Por Sindipetro/MG
Há 60 anos, numa articulação civil-militar, houve um golpe de Estado no Brasil com nefastas consequências para o país. Trabalhadoras e trabalhadores da Petrobrás foram duramente afetados, principalmente com a participação da estatal na repressão que dominou o país durante o regime militar. Um período de exceção que perdurou por mais de duas décadas.
Na véspera do dia 31 de março de 1964, data do Golpe, o jornal Voga, informativo dos trabalhadores da Refinaria Gabriel Passos (Regap), alertava sobre as iniciativas golpistas e conclamava a categoria à resistência. Dali em diante a categoria petroleira resistiu, mas também foi vítima e testemunha da presença da atuação do Governo Militar diretamente na gestão de pessoal da Petrobrás, como mostram estudos sobre o período.
Considerada como empresa estratégica, fundamental para o projeto de desenvolvimento nacional proposto pelos militares, a Petrobras foi alvo, desde o dia seguinte ao golpe de 1964, de uma série de ações que, na concepção dos golpistas, visavam eliminar o que eles denominavam como “comunização” da estatal.
Para que essas ações fossem viabilizadas, uma minuciosa estrutura nacional de vigilância, monitoramento e repressão passaria a funcionar no interior da empresa, mas com importante conexão e enraizamento nos diferentes órgãos de repressão comandados pelo Estado brasileiro.
Essas constatações estão documentadas no artigo “Pistas sobre a estrutura e as ações de repressão do Estado brasileiro no pós-1964 e sua configuração no interior da Petrobras”, de autoria da pesquisadora e doutora em Sociologia pela IFCH/Unicamp, Laura Praun e da jornalista e mestre em Comunicação pela USP, Cláudia Costa.
O artigo, publicado na Revista do Arquivo do Governo de São Paulo, em 2016, analisa a estrutura de repressão instituída no interior da Petrobras durante a vigência do regime civil-militar brasileiro, assim como sua repercussão sobre seus trabalhadores e órgãos de representação política e sindical, com base em pesquisa bibliográfica e documental.
“Limpeza da Petrobrás”
O regime militar acreditava que comunistas e sindicalistas tinham dominado os quadros da petrolífera e diversos funcionários foram perseguidos, caluniados e exonerados da empresa. Poucos dias depois do Golpe, foi fundada a Comissão Geral de Investigação (CGI) com a missão de promover uma “limpeza da Petrobras”. Comandada por um general, a CGI levantou cerca de 3 mil suspeitos em pelo menos 1.500 processos de investigação. Entre abril e outubro de 1964, período em que a CGI funcionou, 516 trabalhadores da Petrobras foram sumariamente demitidos como resultado dos temidos Inquéritos Policiais-Militares (IPM). Outros tantos tiveram contratos rescindidos, foram intimidados, transferidos de área ou sofreram sanções administrativas.
A violência foi muito além de sindicâncias, demissões e outras punições no plano administrativo. De acordo com as pesquisadoras, alguns trabalhadores da Petrobras foram presos e torturados, caso do deputado federal Mário Soares Lima, dirigente sindical petroleiro da Refinaria Landulpho Alves, na Bahia. Segundo o jornal carioca Correio da Manhã, o parlamentar e funcionário da Petrobras foi submetido a surras diárias na prisão da Polícia Militar.
Conforme é citado no artigo, juntamente às prisões, o conjunto das entidades sindicais petroleiras sofreram intervenções. Estas ações, se por um lado destituíam os trabalhadores de seus instrumentos de organização, por outro, ao intervirem nos sindicatos e caçarem os mandatos de seus dirigentes, a ditadura e seus representantes na Petrobras “quebravam” a estabilidade desses trabalhadores, abrindo o caminho para as demissões sumárias.
Mesmo com o fim da CGI, em outubro de 1964, a estrutura de vigilância, monitoramento e perseguição manteve-se, demonstrando bastante vitalidade nos anos seguintes e com especial atuação entre 1967-68, quando uma nova leva de demissões foi efetuada na empresa. À frente desse processo, um novo órgão, com funcionamento regular e integrado à estrutura da Petrobras: a Divisão de Segurança e Informações (DIVIN).
Na mira da repressão
Uma das principais atividades da DIVIN era a “Ficha de Controle da Investigação Político Social”. Essas fichas, segundo explicam Praun e Costa, embora tivessem como foco investigar trabalhadores com alguma atividade considerada suspeita pelo regime ou que tinham posição contrária à dos militares, “todos os trabalhadores da Petrobras estavam sob a mira das estruturas de repressão”.
A ficha também se tornou parte do processo seletivo da Petrobrás. Qualquer novo funcionário, antes de ter sacramentada a admissão, era submetido a esse escrutínio político interno. O documento trazia nome, filiação, numeração de documentos civis, endereço e três referências que poderiam ser procuradas para atestar a identidade e o comportamento do possível funcionário. Ao fim, a Ficha de Controle servia também como um prontuário interno do funcionário, podendo receber observações ao longo de sua atividade na empresa. O documento foi aplicado com esse nome e natureza investigativa até 1980.
A documentação levantada pelas pesquisadoras também mostra a presença de infiltrados, presentes no interior da Petrobrás desde o Golpe, vindos de diferentes órgãos, militares ou civis. Eles cumpriram papel importante para o funcionamento do aparato repressivo. No “plano de trabalho” da CGI- Petrobras, de abril de 1964, constam 16 alunos oficiais da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) que foram infiltrados nas unidades da Petrobras, incumbidos de “investigar” trabalhadores listados pelo SFICI, atividade que, conforme relatório apresentado, contou com a colaboração de agentes locais. (PRAUN; COSTA, 2015). Esses infiltrados, também presentes no interior das entidades de classe dos petroleiros, monitoravam as atividades do trabalhador dentro e fora de seu local de trabalho.
Estrutura da empresa era utilizada para violar direitos
Outros dados sobre a participação da Petrobrás na Ditadura Militar estão relatados no trabalho de pesquisa que envolveu 55 pesquisadores e foi conduzido pela Universidade Federal de São Paulo, através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp) em parceria com o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo. O projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura” é coordenado pelo pesquisador Edson Teles.
Conforme traz a reportagem sobre o estudo, divulgada pela Agência Pública, em 30/05/2023, a estrutura da empresa também era utilizada pelo regime. O relatório do próprio Exército informa que a empresa colaborou com um motorista e um veículo na “Operação Pajussara”, que buscou, em 1971, capturar Carlos Lamarca, um dos maiores nomes da resistência contra a ditadura.
Listas sujas
Além dos ideais políticos, os serviços de vigilância da Petrobrás também teriam monitorado a orientação sexual de seus trabalhadores. Isso ocorria no contexto das “listas sujas” — caracterizadas pelo compartilhamento de informações entre redes de segurança de companhias em realocações no mercado de trabalho. O levantamento da Unifesp identificou ao menos 10 situações em que os trabalhadores eram perseguidos por questão da sexualidade, descreve a reportagem. “Um outro relatório, de 22 de agosto de 1973, reforça a ocorrência de ações discriminatórias. Descreve o afastamento de um assistente administrativo, de 38 anos, por ser “conhecido como elemento pederasta passivo” e que no local de trabalho “defendia tese do reconhecimento do ‘3º sexo”, mais um termo homofóbico e pejorativo utilizado nas justificativas à época”, cita a reportagem.
Segundo a reportagem da Agência Pública, o acervo da Petrobrás com documentos e testemunhos que por décadas ficou escondido faz parte de um relatório ainda inédito para envio ao Ministério Público Federal e que pretende servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. “Um dos objetivos era reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas empresas”, diz Edson Teles, coordenador do projeto.
Com informações da Agência Pública
Leia mais: Petrobrás participou de torturas e monitorou até a orientação sexual de funcionários
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e Argumento, v. 9, n. 20, p. 5-74, 2017.
COSTA, Claudia; PRAUN, Luci. Pistas sobre a estrutura e as ações de repressão do Estado brasileiro no pós 1964 e sua configuração no interior da Petrobras. Revista do Arquivo, No.2, 2016.
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Vigiar e punir: a Petrobras durante a ditadura militar. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-petrobras-durante-a-ditadura-militar/. Publicado em: 4 jan. 2021. ISSN: 2674-5917.